- Bom, é uma história antiga. Deve ter já uns vinte e poucos
anos. Dizem que ele era um cara bonitão.
- Não parece.
- Mas naquela época era. Andava sempre bem vestido, tinha um
carrão. Sempre muito educado, mas meio quieto. Parece que trabalhava no centro,
em algum banco. Gerente de investimentos ou coisa assim. Morava a uns dois
quarteirões da minha casa, mas na época eu não morava aqui. Quem contou tudo
foi um amigo do meu pai, que também mora por perto e conheceu ele nos bons
tempos.
- E aí?
- Então, parece que no caminho para o trabalho, passava sempre
por essa rua, de carro. Um dia, veio um grupo de grafiteiros e pintou esse muro
inteiro. Cada um ficou com um pedaço. Na maioria, eram desenhos comuns, como
esses que a gente vê em muitos grafites pela cidade. Mas um destoava do grupo.
Um artista amador resolveu usar seu pedaço de muro para uma obra mais
elaborada. Levou várias semanas, mas acabou ficando quase uma obra
renascentista: Uma moça sentada a penteadeira, escovando os cabelos em frente do
espelho. Na pintura, a moça estava sentada de costas, só se via seu rosto no
espelho.
- Parece bonito
- Não era. O “artista” estava bem longe de ser um
Michelangelo; os ângulos, as distâncias e as luzes estavam todos errados. Dizem
que era desconcertante. Ninguém sabe precisar exatamente o ponto, talvez o
olhar estranho da moça, talvez a forma impossível que a cabeça formava com o
reflexo no espelho... A verdade é que o conjunto da obra causava um certo asco
em quem olhava, um arrepio na espinha meio inexplicável. Dizem que o próprio
pintor ficou desgostoso e deixou de pintar. Meu pai conta que a tia dele Irene
fazia o sinal da cruz toda vez que passava por aqui.
- Mas o que o velho tem a ver com isso?
- É aí que entra a parte mais estranha da história.
- Mais estranho que aquilo ali?
- Sob certo ponto de vista, sim. Como eu disse, ele passava
todos os dias por aqui de carro e deve ter sido assim que viu a pintura. Nesse
ponto da história ninguém sabe exatamente o que aconteceu, só dá pra imaginar.
De alguma forma, o cara ficou fascinado pela moça da parede. Todo dia ele
diminuía a marcha do carro para apreciar um pouco melhor os detalhes do
desenho. Um vizinho disse que uma época ele parou de ir de carro para o
trabalho, provavelmente para poder admirar melhor a moça; ia a pé. Mas veja
bem, são uns três quilômetros daqui até o centro. Parece que ele se apaixonou
por uma imagem que outras pessoas não conseguiam olhar por mais que alguns
instantes.
- Caramba!
- Pois é. Ele começou a vir aqui todos os dias no intervalo
do almoço, talvez se sentasse nesse mesmo banco que estamos sentados agora. A
fascinação se transformou em obsessão. Começou a sair mais cedo do trabalho e
chegar mais tarde. À noite tem muito pouca luz por aqui, mas uma vez um guarda
pegou ele de madrugada com uma lanterna apontada para a moça da parede e acabou
levando ele pra delegacia. Um amigo do amigo do meu pai contou, que um cara que
trabalhava com ele no banco disse, que nessa época ele já passava o dia inteiro
distraído no trabalho. E disse que depois encontraram umas fotos do muro numa
gaveta da escrivaninha dele. Mas isso não é certo. O fato é que depois parou de
vez de ir para o trabalho, não se sabe nem mesmo se chegou a ser demitido.
Passava o dia inteiro por aqui, andando de lá pra cá. Ficava horas meio que
hipnotizado, parado em frente ao reflexo da moça no espelho...
- Foi aí que aconteceu a desgraça. Uma noite veio aqui o
pessoal da prefeitura e pintou de bege todo o muro, apagando todos os desenhos
e a moça da parede. Talvez algum funcionário novo tenha achado que não ficava
bem um muro de cemitério todo pintado com grafites alegres. Dizem que quando
ele chegou de manhã e viu o novo muro ficou alucinado. Gritou, esperneou,
rasgou as roupas, bateu no pessoal da prefeitura que ainda estava por aqui. Mas
já era tarde, a moça já não existia mais. Chegaram a internar ele por alguns
dias, depois acabaram soltando. E é isso, desde então ele nunca mais saiu
daqui, o velho do muro, é como todos o chamam. Faz parte da parede, como um dia
a moça fez.
Os dois terminaram os últimos goles do almoço e continuaram
olhando para o outro lado da rua, onde o velho continuava arranhando
freneticamente o muro bege, já marcado em vários pontos com o sangue de muitos
anos.
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