sexta-feira, 7 de setembro de 2012

O Achamento


 A Pero Vaz de Caminha, escrivão da armada do Cabral, sobre o achamento.
Essa carta é extra oficial, portanto trate de queimá-la depois de ler.
Caminha, você sabe que eu gosto de você e tenho te protegido todos esses anos apesar da sua letra ser horrível. Mas que diabos de carta idiota é essa que você me mandou?
Eu li. Quer dizer, li não porque definitivamente não consigo entender seus garranchos. Leram pra mim. Esse que é o problema. Agora espalhou-se o boato pela corte que vocês não acharam nada que preste nessas terras novas. Só mato e gente pelada.
Pelo amor de Deus Pero, sabe quanto dinheiro está me custando essa expedição? Eu esperando ouro e pedras preciosas e o que vocês me mandam? Arcos, flechas e penas de papagaio! O que você quer que eu faça? Saia vendendo artesanato pelas ruas para tentar pagar a fortuna que gastei nessa viagem? Ai, ai...
O pior é que está todo mundo rindo pelas minhas costas. Teve até um palhaço que teve a audácia de gargalhar nas minhas fuças. Ficou apontando pra mim e berrando: "perrdeu, merrmão, perrdeu!" Nem sei o que ele quis dizer com isso, mas mandei cortarem-lhe a cabeça por via das dúvidas. Mandei enforcar também um conselheiro imbecil que só ficava repetindo: "eu te disse, eu te disse, mas eu te disse". Nossa, como odeio isso!
E agora? O que vou dizer pro parvo do Fernão e pra bruaca da Isabel? Você sabe que estou querendo casar com a filha deles. Convenhamos, não acho que seja uma boa idéia conversar com os sogros sobre "três ou quatro moças, bem novinhas e gentis, com cabelos muito pretos e compridos pelas costas; e suas vergonhas, tão altas e tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as nós muito bem olharmos, não se envergonhavam". Os carolas vão me chamar de pervertido, e com razão. Só você mesmo para me escrever tamanhas barbaridades.
Você sabe que os desgraçados estão enchendo o bucho de ouro lá na parte deles. Aquele doido do Cristovão não pára de mandar navios carregados. E eu recebo papagaios!
Era isso que eu esperava que você tivesse me escrito:
"Chegamos e encontramos palácios com pisos e paredes de ouro. Entramos, chutamos alguns nativos, demos alguns tiros e pegamos todo ouro, prata e pedras preciosas que pudemos. Mande mais navios porque esses que temos já estão cheios".
Mas não! Recebo a porra de uma carta dizendo que não tem nem pedras, nem ouro, nem prata, nem especiarias, nem merda nenhuma de valor, mas tem "bons ares" e "águas infinitas" e "muito bons palmitos" e "de tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo". Ótimo! Vamos abrir a porra de um resort no meio do nada. Ou talvez Portugal resolva plantar batatas no fim do mundo. O próximo passo será, quem sabe, importar queijo da lua.
Caminha, toca pra Calicute. E vê se faz uma grana pra mim por lá. Sei que já passamos por muita coisa juntos, as farras na casa da baronesa e coisa e tal. Mas sua burrice já está passando dos limites. Juro que se ouvir de novo que vocês ficaram dançando com os beiço-de-osso mando todo mundo pras masmorras. Bando de incompetentes!
Ah! Antes que eu me esqueça, fala pro Pedro mandar umas moças dessas bem novinhas que você falou pro Kaiser. Ouvi dizer que os boches gostam dessas coisas. Talvez essa seja uma maneira decente de diminuir os prejuízos. De repente a gente consegue até abrir um novo mercado com esse negócio.
Sem mais,
El-Rei D. Manuel, o Venturoso.

Obs. Esse manuscrito foi encontrato em Calicute, entre os pertences de Pero Vaz de Caminha, que por motivos desconhecidos não acatou a ordem do rei de queimá-lo. Fez-se aqui uma tradução e adaptação livres, pois de outro modo a maioria dos termos não seria inteligível. Resta informar que um parágrafo inteiro da carta, entre o penúltimo e o último, estava completamente rasurado, o que impediu sua transcrição. Provavelmente continha alcunhas de baixo calão relacionadas a pessoa de Pero Vaz.

* Texto originalmente publicado no extinto e saudoso Garotas Que Dizem Ni.

Um comentário:

  1. Ele deve ter queimado um escrito sem importância para dar satisfações, e poder guardar o original.

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