Essa
carta é extra oficial, portanto trate de queimá-la depois de ler.
Caminha,
você sabe que eu gosto de você e tenho te protegido todos esses anos apesar da
sua letra ser horrível. Mas que diabos de carta idiota é essa que você me
mandou?
Eu
li. Quer dizer, li não porque definitivamente não consigo entender seus
garranchos. Leram pra mim. Esse que é o problema. Agora espalhou-se o boato
pela corte que vocês não acharam nada que preste nessas terras novas. Só mato e
gente pelada.
Pelo
amor de Deus Pero, sabe quanto dinheiro está me custando essa expedição? Eu
esperando ouro e pedras preciosas e o que vocês me mandam? Arcos, flechas e
penas de papagaio! O que você quer que eu faça? Saia vendendo artesanato pelas
ruas para tentar pagar a fortuna que gastei nessa viagem? Ai, ai...
O
pior é que está todo mundo rindo pelas minhas costas. Teve até um palhaço que
teve a audácia de gargalhar nas minhas fuças. Ficou apontando pra mim e
berrando: "perrdeu, merrmão, perrdeu!" Nem sei o que ele quis dizer
com isso, mas mandei cortarem-lhe a cabeça por via das dúvidas. Mandei enforcar
também um conselheiro imbecil que só ficava repetindo: "eu te disse, eu te
disse, mas eu te disse". Nossa, como odeio isso!
E
agora? O que vou dizer pro parvo do Fernão e pra bruaca da Isabel? Você sabe
que estou querendo casar com a filha deles. Convenhamos, não acho que seja uma
boa idéia conversar com os sogros sobre "três ou quatro moças, bem
novinhas e gentis, com cabelos muito pretos e compridos pelas costas; e suas
vergonhas, tão altas e tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as
nós muito bem olharmos, não se envergonhavam". Os carolas vão me chamar de
pervertido, e com razão. Só você mesmo para me escrever tamanhas barbaridades.
Você
sabe que os desgraçados estão enchendo o bucho de ouro lá na parte deles.
Aquele doido do Cristovão não pára de mandar navios carregados. E eu recebo
papagaios!
Era
isso que eu esperava que você tivesse me escrito:
"Chegamos
e encontramos palácios com pisos e paredes de ouro. Entramos, chutamos alguns
nativos, demos alguns tiros e pegamos todo ouro, prata e pedras preciosas que
pudemos. Mande mais navios porque esses que temos já estão cheios".
Mas
não! Recebo a porra de uma carta dizendo que não tem nem pedras, nem ouro, nem
prata, nem especiarias, nem merda nenhuma de valor, mas tem "bons
ares" e "águas infinitas" e "muito bons palmitos" e
"de tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela
tudo". Ótimo! Vamos abrir a porra de um resort no meio do nada. Ou talvez
Portugal resolva plantar batatas no fim do mundo. O próximo passo será, quem
sabe, importar queijo da lua.
Caminha,
toca pra Calicute. E vê se faz uma grana pra mim por lá. Sei que já passamos
por muita coisa juntos, as farras na casa da baronesa e coisa e tal. Mas sua
burrice já está passando dos limites. Juro que se ouvir de novo que vocês
ficaram dançando com os beiço-de-osso mando todo mundo pras masmorras. Bando de
incompetentes!
Ah!
Antes que eu me esqueça, fala pro Pedro mandar umas moças dessas bem novinhas
que você falou pro Kaiser. Ouvi dizer que os boches gostam dessas coisas.
Talvez essa seja uma maneira decente de diminuir os prejuízos. De repente a
gente consegue até abrir um novo mercado com esse negócio.
Sem
mais,
El-Rei
D. Manuel, o Venturoso.
Obs.
Esse manuscrito foi encontrato em Calicute, entre os pertences de Pero Vaz de
Caminha, que por motivos desconhecidos não acatou a ordem do rei de queimá-lo.
Fez-se aqui uma tradução e adaptação livres, pois de outro modo a maioria dos
termos não seria inteligível. Resta informar que um parágrafo inteiro da carta,
entre o penúltimo e o último, estava completamente rasurado, o que impediu sua
transcrição. Provavelmente continha alcunhas de baixo calão relacionadas a
pessoa de Pero Vaz.
* Texto originalmente publicado no extinto e saudoso Garotas Que Dizem Ni.
* Texto originalmente publicado no extinto e saudoso Garotas Que Dizem Ni.
Ele deve ter queimado um escrito sem importância para dar satisfações, e poder guardar o original.
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